* por Tata Kisaba Kiundundulu, professor doutor Sergio P.Adolfo, de Nzazi
As cores fazem parte das atividades humanas desde que o homem ganhou estatuto de humano. Mesmo para os povos menos desenvolvidos tecnologicamente as cores exercem um grande fascínio, haja vista que os homens da caverna já as utilizavam para suas pinturas rupestres. Na história da arte humana vemos que, adornos corporais, aparatos de guerra, instrumentos musicais, utensílios domésticos, seja qual fosse qual fosse à finalidade ou a forma do instrumento, o homem destacava e destaca essas formas com as cores mais variadas e luminosas, utilizando-se de materiais que tinha a mão, sejam folhas e troncos maceradas, barro de várias procedências, carvão de madeiras e outros matérias, na intenção de dar-lhes um colorido e uma expressividade maior.
O próprio corpo humano tem servido como território de pinturas e arabescos em busca do belo e também do terrível e do assustador. Para atividades da caça, da guerra, atividades religiosas e simbólicas, o homem se paramenta de cores, seja para assustar, agradar, ou apenas como prazer estético. As cores fazem parte do cotidiano dos homens desde priscas eras e mesmo entre os povos mais desenvolvidos tecnologicamente ela é elemento fundamental na sociedade, seja colorindo casas e habitações, ou tomando forma nos afrescos e pinturas em tela ou escultura em madeira e outros materiais. As cores estão presentes em todas as atividades humanas, que procura imitar a natureza que é sempre colorida, seja nos reinos animal, vegetal ou mineral. Tudo é cor, tudo são matizes, tudo vibra no contato com a luz, criando um mundo de formas e texturas que impressionam e comovem o olhar humano.
No candomblé de congo-angola, enquanto sociedade religiosa, as cores gozam de um estatuto especial, assim como nas demais religiões, seja através das comidas votivas, nos adornos da casa, ou nas pinturas rituais dos iniciados, enfim, tudo gira em torno das cores branco, vermelho e preto, que são carregadas de um simbolismo próprio. Outras cores também são utilizadas, mas não com a mesma freqüência e normalmente são cores derivadas das três principais que são o branco, o vermelho e o preto.
No Nzo Tumbensi de Itapecerica da Serra-Sp. fizemos um levantamento das principais cores nas cerimônias e chegamos à seguinte conclusão.
Entre as três cores utilizadas encontram as seguintes percentagens assim distribuídas entre os vários momentos do culto.
47% dos elementos são de cor branca, 32% são de cor vermelha e 21% são de cor preta, o que dá uma idéia da preferência simbólica pela cor branca, seguida da vermelha e em último lugar da preta. Isso indica também que a cor branca e vermelha poderia ser vistas como cores positivas, enquanto a cor preta é considerada negativa, e, portanto, usada só em determinadas ocasiões.
COR BRANCA
Cor branca em roupas e paramentos
A roupa branca em uso no terreiro
Roupa branca da Muzenza (iniciado)
Colares brancos usados por todos os filhos de santo
B) A cor branca dos animais de oferenda
4) Galos e galinhas brancas
5) Cabritos e cabras
6) O sangue branco do caramujo
C) Comidas votivas brancas
7) Acaçá
8) canjica
9) farinha de mandioca
10) bolinhos de farinha
11) Água
12) Cachaça
13) Vinho branco
14) Pipoca
15) Sal
16) Feijão branco
D) edificações
17) A casa de Kavungu é pintada de branco
18) A casa de Nvumbi (casa dos mortos) é branca
19) Barracão (salão de festas públicas) é pintado de branco
20) A pintura do quarto sagrado é branca |(baquisse)
21) O nkissi Lemba é branco
22) Na primeira saída pública a Muzenza é pintada de branco
Outros materiais
23) Máscaras dos Bankissi
24)Pemba branca
25) Pano branco (morim) usado na kusaka
26) Bandeira do Tembu
27) Velas
COR VERMELHA
Roupas e paramentos
a roupa do Nkissi Matamba
contas vermelhas dos colares (Nzazi, Matamba, e outros)
máscaras dos bankissi
assentamento de Nzazi
Animais
frangos e caprinos vermelhos (ou marrons)
Comidas votivas
sangue dos animais
vinho tinto
azeite de dendê
mel
Makanza (acarajé)
outros materiais
Pano na sakulupemba
Velas para os catiços
Barro dos vasos, potes e quartinhas
Pintura no muzenza
Miçangas (Contas) vermelhas
edificações
casa do catiço
COR PRETA
roupas e paramentos
as roupas dos catiços
colares preto e vermelho e preto e amarelo
pintura azul no muzenza
animais
galos e cabritos pretos para os catiços
c) alimentos
feijão preto
verduras
outros materiais
1) as estatuetas de Nzilla e Nkod
2) Pano na sakulupemba
3) carvão
4) pólvora
edificações
Como se pode ver pelas descrições o uso maior se faz da cor branca e há uma razão para isso. Victor Turner (2005) ao analisar os Ndembu faz um estudo sobre o uso das cores entre eles e mostra a predominância da cor branca no cotidiano e nos rituais. Sabe-se e é de conhecimento corrente que o branco é a cor dos antepassados. Entre os bakongos quando alguém morre, faz uma passagem pelo grande mar e ao chegar à terra dos antepassados, o Mbanza Pemba, ele está branco translúcido pelo contato que teve com a grande água. Em compensação, os que não tiveram uma vida exemplar, não chegam a Mbanza Pemba e transforma-se em Tebo (pl. Matebo) e transformando-se na cor cinza com os cabelos vermelhos. São seres espirituais inferiores que passam o tempo rodeando as aldeias dos vivos, atormentando-os e roubando seus frutos e alimentos. Turner nos informa que tanto o branco quanto o vermelho em determinadas ocasiões pode representar tanto a masculinidade quanto a feminilidade. Na pintura de guerra dos homens o vermelho funciona como masculinidade, mas nos ritos reguladores das menstruações femininas o branco é que representa a masculinidade e o vermelho a feminilidade. Quanto ao negro representa a escuridão, o final das coisas, mas como tudo na cultura africana possui dois pólos, o negro pode também representar o recomeço, já que como representante da morte é também o recomeço das coisas. E a morte não é encarada como um fim em si como na cultura ocidental, mas como uma mudança de estatus perante a vida comunitária.
O branco é sempre entre os Ndembus uma cor positiva, enquanto o negro é negativa e o vermelho possui caráter ambivalente, pois pode ao mesmo tempo ser positivo e negativo, porque ao mesmo tempo em que representa a vida (sangue menstrual, das caçadas, que circula e dá vida aos seres) pode também simbolizar a morte. (o sacrifício ritual, a caçada, a mestruação etc.)
A primeira afirmação que podemos fazer é que o candomblé de congo-angola é herdeiro desse esquema de cores como já vimos em páginas precedentes. O uso intensivo dessas três cores vem demonstrar que herdamos dos africanos a utilização dessas cores com ligeiras adaptações, até na quantidade empregada do branco do vermelho e do negro. O negro como cor negativa está colocada em último lugar na escala cromática, enquanto o vermelho como cor ambivalente está em segundo lugar e o branco como cor positiva está colocada em primeiro plano. Todos os rituais existentes numa casa de candomblé congo-angola fazem uso das três cores, às vezes entremeados de outras cores, mas reconhecidas como oriundas dessas. Por exemplo, o azul e o verde são considerados negros, o laranja e o amarelo como vermelhos. Entre os Ndembu o sol e a lua são considerados brancos, dada a sua luminosidade, assim como entre outros povos bantu, e tal como no candomblé de congo-angola, o amarelo e o laranja são vermelhos e o azul e o verde são negros.
Percebemos que nos ritos de limpeza – sakulupemba – as três cores são utilizadas numa ordem crescente, primeiro usa-se o preto, alimentos, folhas, grãos, depois se usa o vermelho e finalmente o branco, finalizando com a alva canjica de milho, como a fechar o ciclo cromático e finalmente passa-se um pano branco, em todo o corpo do consulente, finalizando o ritual. O uso do preto em primeiro lugar está claramente expresso na necessidade de expulsar as coisas negativas e maléficas que vem causando sofrimento ao paciente. Em seguida entra a cor ambivalente trazendo boas coisas, num período intermediário entre o ruim, o negativo e o bom. E finalmente o branco, como cor positiva, a preparar o paciente para um novo momento, livre dos males que o acometiam. O uso das três cores, que vai do negativo (negro), da escuridão, passando pelo vermelho, uma cor ambivalente, e chegando ao branco é um percurso de fruição espiritual e mística que consiste em libertar o sujeito de todas as mazelas a que foi submetido.
Quanto aos animais de sacrifício, apenas se sacrifica animais de cor preta para as entidades ligadas aos aspectos de segurança e proteção da casa, dos homens e de tudo que se dispõe no candomblé. Catiços (machos ou fêmeas) recebem em sacrifício animais de cor escura (preferencialmente pretos) ou Mpambu Nzilla em suas várias modalidades, pois são divindades encarregadas de levar o mal, acostumadas a lidar com as forças negativas e, portanto, necessitam do sangue de animais escuros para receberem a força (nguzo) necessária para desempenharem suas devidas funções. Os bankissi ligados a terra também recebem cores fortes (preto e branco, preto e vermelho, preto e amarelo), pois a terra (o Ntoto) é o grande mistério e de força incomensurável. Daí a presença do preto como força renovadora, princípio e fim de todas as coisas. Alguns bankissi recebem em sacrifício animais de cor vermelha (marrom) ou amarelo, que são considerados vermelhos. Seriam esses bankissi de natureza ambivalente, já que o vermelho é uma cor ambivalente? Pensamos, sobretudo que esses bankissi dado o seu caráter ambivalente (Nzazi, Matamba, Bamburecema, Kavungu) tanto podem ser benevolentes quanto se provocados fazer grandes estragos na natureza e nos homens. Por isso, suas cores estão ligados ao vermelho e seus derivados, assim como os ligados a terra e a força da natureza usam as cores preto e amarelo, preto e branco, ou branco e vermelho.
Os bankissi ligados à água, ou vestem-se de amarelo (considerado vermelho) ou vestem-se de azul ou verde e portam contas da mesma cor. O verde é considerado preto, dado o mistério das águas profundas, no caso das divindades do mar. Os de amarelo são as águas doces dos rios e lagoas, o que mostra o caráter ambivalente dessas águas, que são tão necessárias à sobrevivência humana, mas que também podem matar e destruir, com afogamentos, alagamentos e tantos outros perigos. Cada cor atribuída a um Nkissi seja através das contas rituais ou das roupas portadas por eles, quando manifestados, tem uma razão lógica, acompanhando o raciocínio e a tradição bakongo.
Há todo um esquema classificatório de cores evidenciando a natureza de cada divindade, herança naturalmente africana, vinda com os escravizados das terras bantu.
Quanto às cores da iniciação, durante todo o período de recolhimento a que é submetido o noviço, 21 dias em total recolhimento no bakissi, ele fica vestido o tempo todo de branco, evidenciando o rito de passagem da vida profana para a vida eclesial. O branco aí representa esse momento de transição, sendo a cor dos antepassados e da passagem da vida terrena para a vida na aldeia dos antepassados. O branco além de significar a pureza, ou seja, os momentos de purificação por que está passando o noviço, é também o símbolo da entrada numa nova vida, vida essa de caráter sacralizante. Sendo a cor da morte e da renovação tem o claro caráter de morte para a vida profana e o renascer na vida espiritual dentro da religião que ele abraçou.
Durante as saídas públicas que em algumas casas é em número de três e em algumas em número de quatro, o noviço vai envergar as três cores. Na primeira saída ele vem vestido de branco, com as pinturas rituais em branco, feitas de pemba1 a cor branca por excelência. Traz o rosto e a cabeça assim como parte do corpo pintados de pemba, e vem vestido com uma roupa inteiramente branca. É o simbolismo de uma vida que esta nascendo para a comunidade por isso ele porta a cor positiva por excelência, numa clara alusão a morte do velho homem e o renascer do novo membro da confraria.
É alguém que está nascendo para o Nkissi, mas que ainda está em momento de passagem, como se este fosse o primeiro rito. Aliás, as saídas do Muzenza nada mais são que uma rememoração pública, aos olhos da comunidade, dos ritos pelos quais passou durante os dias de recolhimento.
Na segunda saída, o noviço vem de roupa colorida e tem o corpo pintado com as três cores (preto, vermelho, branco) ou de cores correspondentes a essas. Sendo a segunda saída um estágio intermediário, natural que as três cores apareçam, num momento de equivalência entre o ontem e o agora. Se na primeira saída ele demonstra que está entrando numa nova fase de vida, que vai pertencer à confraria, nessa segunda saída e o momento entre o querer pertencer e o pertencer. É nessa saída que o Nkissi vai se manifestar dando seu nome, o nome da divindade que rege o novo iniciado. Esse momento colorido (roupa e pinturas rituais) é o momento de afirmação total do novo fiel àquela confraria. O colorido feito em seu próprio corpo referenda esse momento de posse do Nkissi. A partir de agora, o neófito passa a ser “propriedade” daquele Nkissi e sua vida será regida pelos ditames da nova condição. As três cores são, pois a demonstração desse pertencimento a uma religião e a uma cultura.
Turner (2005) informa que nas grandes cerimônias entre os Ndembu, como o ritual de circuncisão, a partida para a guerra, ou os rituais de iniciação em geral, as três cores (o preto, o vermelho e o branco) estão presentes, nas máscaras, nos escudos, pintados nos participantes, ou como emblemas e estandartes. Talvez só nas grandes ocasiões as três cores apareçam combinadas entre os Ndembu, pois o mais comum e que seja usada aos pares, como o branco e preto ou branco e vermelho. Mas nas grandes ocasiões e comemorações elas são usadas juntas no sentido de completude, pois os Nedembu dizem que três rios têm origem em Nzambi Ampugo. Um rio de águas brancas, outro de águas vermelhas e ainda outro de águas pretas, numa clara alusão de que as três cores são originadas em Nzambi e partilham da realização e do equilíbrio do mundo. Toda a natureza é composta de três cores, desde as águas até os frutos das árvores, passando pelos animais e os homens. A vibração das três cores é que dá sentido e equilibra o mundo criado por Nzambi Ampungo, o incriado.
Na terceira saída, o noviço vem vestido com as cores do seu Nkissi protetor, que será de acordo com a natureza do mesmo. Se for um Nkissi ligado a terra, normalmente virá vestido de palha, ou de um tecido grosso e rústico, nas cores palha ou marrom. Se for ligado aos fenômenos da natureza, virá de roupas vermelhas ou vermelho e branco, assim como se for ligado às águas virá de amarelo ou azul ou verde. As cores aí obedecem a um determinado esquema, de acordo com a herança recebida dos africanos, sem fugir ao básico do preto, vermelho e branco, com suas derivações. É o momento culminante da festa, pois o Nkissi, ao dançar entre os humanos estará demonstrando sua alegria e sua posse naquela comunidade. Geralmente há a presença de uma ou duas cores, ou o preto e o vermelho ou o preto e branco, ou as cores consideradas como tal. Mesmo nas roupas estampadas procura-se juntar essas cores, ou evidenciar uma das cores mais características do nkissi em questão.
Quanto ao preto, não é uma cor totalmente negativa. Turner (2005) nos informa que o preto é também considerado a cor do amor verdadeiro, pois durante o ato nupcial é distribuída lama preta em todas as casas da aldeia, num claro partilha mento do amor do casal. Assim podemos ver que os Catiços, que são mais ligados às questões amorosas (como as pomba-giras) usam vermelho e preto, e os catiços machos usam preto. Além do mistério que o preto evoca e a ambigüidade do vermelho, são cores que remetem ao amor e a paixão carnal. Daí o uso dessas cores por esta qualidade de divindade. Algumas dessas entidades usam as três cores, mas o mais comum é que suas roupas sejam em preto, às vezes só vermelho, e às vezes vermelho e preto.
As três cores provêm de Nzambi Ampungo em forma de rios e colorem todos os elementos da natureza. Ao usá-las, o homem está entrando em sintonia com aquele que tudo criou, e deu aos homens elementos para que ele viva melhor. Tudo é colorido e tudo faz parte da criação de Nzambi. Citando textualmente Victor Tuner,
“As cores são concebidas como rios de poder, que tem sua nascente comum em Deus e permeiam todo o universo de fenômenos sensoriais com suas qualidades específicas. Mas, além disso, são consideradas também como tinturas da vida moral e social da humanidade...” (TURNER:2005 pg.106)
Concluindo, poderíamos dizer que as cores no candomblé de congo-angola obedecem a um rígido esquema de composição e uso. Que como as demais manifestações do candomblé nada é aleatório, mas tudo e todos ocupam lugares bem determinados nos rituais e na hierarquia do culto. Que as três cores utilizadas são provenientes da África bantu e que apesar das influências e adaptações necessárias no novo mundo, muito do que de lá veio permanece quase inalterado. Que se parte do conhecimento perdeu-se durante os horrores do tráfico, parte dele permanece na memória oculta de homens e mulheres passados de geração em geração e perpetuados por eles através da oralidade.
Que as três cores o branco, o vermelho e o negro, que são os três rios que fluem de Nzambi Ampungo, são os elementos que estruturam e dão sentido às praticas religiosas e dão unidade a liturgia do candomblé. As águas coloridas dos rios que fluem de Nzambi Ampungo é que fertilizam a terra e todos os seus frutos, assim como dá vida aos seres e aos homens. Sem essas águas coloridas o mundo e todos os seres viriam a fenecer. Portanto, não utilizá-las é negar a existência de Nzambi Ampungo, é negar a existência da natureza exuberante, é em suma, negar a própria existência do homem na terra.
REFERÊNCIAS
TURNER, Victor. Floresta de Símbolos – aspectos do ritual Ndembu.Tradução de Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto. Editora da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2005.
site
http://www.inzotumbansi.org/index.php?option=com_content&view=article&id=110:o-simbolismo-das-cores-no-candomble-de-congo-angola-&catid=13:noticias&Itemid=26
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quinta-feira, 21 de abril de 2011
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